domingo, 25 de maio de 2008

Poder e 80 bilhões

Poder e 80 bilhões

| 15.05.2008

Luciano Coutinho, presidente do BNDES e gestor da nova política industrial, é hoje o braço forte do governo na economia brasileira

Silvia Costanti/Valor/Folha Imagem

Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

Por Por Malu Gaspar e Samantha Lima

No termômetro usado por políticos para aferir o prestígio dos altos membros do governo, é comum associar o poder dos burocratas ao número de personalidades que freqüentam cada órgão público. Por esse prisma, poucas pessoas estão tão em alta nas esferas governamentais quanto o economista Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e responsável por comandar a nova política industrial do governo. No anúncio da nova política, no último dia 12, estiveram presentes à sede do BNDES, no centro do Rio de Janeiro, o presidente da República, nove ministros, dez governadores, dezenas de parlamentares e empresários como Jorge Gerdau e Emílio Odebrecht. O anfitrião saboreou o evento de forma contida, como é seu costume, mas com inegável satisfação. No comando do banco de fomento há um ano, Coutinho não só controla o maior orçamento para investimentos do país, de 80 bilhões de reais, como também exerce uma influência sobre a condução da economia brasileira que há muito tempo um presidente do BNDES não conseguia ter. Ele é hoje um dos personagens centrais na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foi um dos formuladores dessa nova versão de política industrial e tem participado ativamente da criação de grandes grupos empresariais brasileiros. O exemplo mais recente foi a compra da Brasil Telecom pela Oi, que pode dar origem à “supertele” — o BNDES emprestou 2,6 bilhões aos acionistas da Oi e se manteve como sócio relevante da empresa. No ano passado, o banco emprestou 1,4 bilhão de reais ao Friboi, que comprou a americana Swift e tornou-se um dos principais frigoríficos do mundo. Há alguns dias, foi anunciada a liberação de mais 2,5 bilhões para que outro frigorífico, o Bertin, também possa ir às compras. Na carteira de negócios que o banco tem ainda por resolver está a venda de uma participação de 49,99% na AES Eletropaulo, maior distribuidora de energia do país. Identificado com um dos expoentes da corrente dos economistas chamados de desenvolvimentistas, Coutinho sempre defendeu uma participação mais forte do Estado na economia e foi um duro crítico da política econômica mais liberal durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde que entrou para o governo, no início do segundo mandato, ele vem ocupando o espaço deixado por lideranças petistas, como o ex-ministro Antônio Palocci, e se tornando, aos poucos, um dos principais comandantes da economia.

O presidente do BNDES faz parte de um pequeno grupo de economistas que o presidente Lula consulta cada vez que quer formar opinião a respeito de algum tema, do qual participam Luiz Gonzaga Belluzzo, Aloísio Mercadante, Guido Mantega e Henrique Meirelles. Mas o professor, como é chamado pelos assessores, não gosta de comentar o poder que tem. “Sou um simples presidente do BNDES. Estou aqui cumprindo tarefa”, disse, em entrevista exclusiva a EXAME. Ao contrário de antecessores como Carlos Lessa, que ficou conhecido pelas polêmicas que provocou, Coutinho foge de confusão. Por exemplo: embora tenha sido um crítico feroz da política monetária — em 2006, declarou que a atuação de Meirelles no BC era desastrosa —, hoje afirma que se entende perfeitamente com ele. E, mesmo reconhecendo que o BNDES ainda está longe de cumprir o papel que, em sua opinião, deveria ter — “financiar a inovação tecnológica, o desenvolvimento de regiões remotas e projetos de maior risco” —, considera que o banco está certo ao incentivar a formação de grupos nacionais com força suficiente para disputar o mercado mundial.

Luciano Coutinho,
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
Perfil
60 anos, casado, pernambucano
Formação acadêmica
Graduado em economia pela Universidade de São Paulo, é Ph.D. pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos
Carreira
Começou como professor de economia na Unicamp, em 1979. Foi secretário do Ministério da Ciência e Tecnologia de 1985 a 1988 e um dos elaboradores da Lei de Informática, que estabeleceu a reserva de mercado no setor. Antes de assumir a presidência do BNDES, em maio de 2007, era um dos sócios da LCA Consultores, onde se especializou em casos de reestruturação e concorrência

Para esse pernambucano de 61 anos, que escolhe as palavras com cuidado e fala sempre num tom baixo, somente com empresas mais robustas será possível maior inserção do país no ambiente globalizado. “O que o Brasil precisa é de grandes grupos nacionais com condição de competir internacionalmente. Isso gera empregos, desenvolve mais tecnologia e proporciona o crescimento necessário à estabilidade da nossa economia”, diz. A incorporação da Brasil Telecom pela Oi, sob esse ponto de vista, foi uma transação “impecável” e estratégica para que o país conte com uma operadora brasileira à altura de encarar os espanhóis da Telefônica e os mexicanos da Claro. Embora não diga quais setores são elegíveis para um apoio semelhante, Coutinho diz julgar importante o fato de a telefonia demandar muita tecnologia que pode, em teoria, ser produzida no país — talvez uma pista de novas áreas a ser apoiadas pelo banco.

Igualmente importante, em sua visão, é a nova política industrial. Ela prevê a redução de 30% no custo dos financiamentos do BNDES para 24 setores, que também receberão investimentos de 210 bilhões de reais até 2010. O pacote de benefícios fiscais é de 20 bilhões de reais. O objetivo é aumentar a taxa de investimento de 17% para 21% do PIB, a participação brasileira nas exportações mundiais e os investimentos em pesquisa. Segundo Coutinho, a ação do banco estatal se justifica pela lacuna deixada pelos mercados de capitais e financeiro. “Se o BNDES não der suporte ao ciclo de investimentos, o crescimento fica prejudicado. Essa é uma situação transitória. Estou ansioso para que passe logo e o mercado possa financiar cada vez mais esse tipo de investimento”, afirma.

A agenda de Coutinho
Alguns dos grandes projetos em que o presidente do BNDES está empenhado...
Política industrial
Coutinho é um dos idealizadores do pacote. O banco participará fornecendo crédito mais barato a empresas
Oi e Brasil Telecom
Foi um dos principais articuladores do entendimento entre acionistas das operadoras Oi, Brasil Telecom e o governo para a concretização do negócio que uniu as duas empresas. O BNDES emprestou 2,6 bilhões de reais aos compradores
Vale
A mineradora obteve, em abril, a maior linha de crédito já concedida pelo BNDES a uma única empresa. Os 7,3 bilhões de reais podem ser usados até 2012. O banco tem participação no controle da Vale
Pac
Ao assumir o BNDES, Coutinho disse que sua missão era fazer o Programa de Aceleração do Crescimento deslanchar. O banco fornecerá 67 bilhões de reais ao PAC, que, segundo o Tribunal de Contas da União, está com execução atrasada
...e seu poder de fogo para colocá-los em prática (orçamento e desembolsos do BNDES em bilhões de reais)

Orçamento Desembolsos
2003 34 33,5
2004 47 40
2005 60 47
2006 60 51
2007 65 65
2008 80 80(1)
(1) Previsão Fonte: BNDES

Na verdade, os investidores já têm se mostrado crescentemente interessados em financiar empresas brasileiras. Há cinco anos, o mercado de capitais fornecia às empresas 20 bilhões de reais por ano, ou pouco mais da metade do que o BNDES emprestava. Em 2007, as ofertas de ações e debêntures atingiram 114 bilhões de reais, quase o dobro dos repasses do banco. Num cenário desses, muitos economistas acham anacrônica a atuação do banco estatal no sentido de induzir a constituição de conglomerados. Para alguns deles, o primeiro risco que o BNDES enfrenta é o de ajudar empresas sem condições de competir de fato — algo próximo do papel de hospital de companhias quebradas. O banco faria, assim, a escolha dos vencedores em vez de incentivar a formação de competidores. Trata-se de uma ameaça que se concretizou no passado e, vez por outra, surge no presente. Recentemente, o próprio Lula afirmou que o governo deveria fazer de tudo para ajudar a Gradiente, apesar dos dez anos consecutivos de prejuízo operacional da companhia. Outro problema seria o banco se desviar de seu papel no desenvolvimento para financiar quem não precisa: empresas com porte e credenciais suficientes para captar recursos no mercado ou mesmo no exterior a taxas baixas. “Os dez maiores tomadores de empréstimos do banco, todos eles com acesso ao mercado de capitais, absorvem mais de 50% das operações”, diz Cláudio Haddad, presidente do Ibmec São Paulo. “Por que o banco não financia empresas que não têm acesso a essas alternativas?”

As declarações de Coutinho a respeito do mercado de capitais, no entanto, surpreendem positivamente quem conhece seu histórico de alinhamento político à esquerda. Ele avalia, por exemplo, que ainda serão necessários alguns anos até que a taxa de juro básica caia para 6% a 7% ao ano. Prevê que, quando isso ocorrer, o BNDES poderá ser substituído pelo mercado de capitais no financiamento de longo prazo. “Para alguém com sua formação e seu passado, é notável que ele venha mudando de opinião de forma tão saudável”, afirma o ex-ministro Maílson da Nóbrega. Coutinho diz que continua defendendo os mesmos princípios de 20 anos atrás, mas admite que mudou um pouco: “Entre minha atuação acadêmica e minha vinda para o BNDES, trabalhei em consultoria, conhecendo a economia real. A gente vai aprendendo que é preciso ajustar a concepção abstrata às situações concretas.”

No mundo real, Coutinho saiu-se muito bem. “A experiência de consultor lhe deu um conhecimento profundo da indústria brasileira”, diz o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge. De 1995 a 2007, Coutinho foi sócio da LCA, consultoria que fundou com quatro ex-alunos seus de economia na Universidade de Campinas. Nesses 12 anos, a LCA passou a ter 50 consultores e tornou-se um dos principais oráculos do país. Especializado em cenários macroeconômicos e em litígios sobre concorrência, Coutinho se destacou como defensor de casos controversos junto ao Cade, o conselho federal de defesa da concorrência. A formação da Ambev, a compra da Garoto pela Nestlé e a criação da Braskem estão na sua lista. Embora não tenha ganhado todas as causas que defendeu, seu prestígio cresceu na mesma medida que seus honorários. “Em geral, os consultores emitem parecer e não entram nas negociações. Não era o caso do Luciano, que chegava a sentar à mesa para assinar acordo, negociar penalidades, eventualmente reduzir multas. Isso causava irritação entre os economistas de dentro e de fora do Cade, mas os clientes adoravam”, diz um ex-conselheiro do órgão que acompanhou de perto sua atuação. Um parecer de Coutinho para o Cade podia custar até 150 000 reais, e suas palestras eram contratadas, há cerca de dois anos, por 20 000. No BNDES, Coutinho tem salário estimado em cerca de 40 000 reais. Sua rotina de trabalho é pesada. Ele costuma chegar ao banco por volta das 8h30 e não sai antes das 21 horas. Tem de lidar não apenas com questões mais nobres, como a política industrial, mas também com os estragos causados à reputação do BNDES pelo primeiro grande caso de corrupção envolvendo o banco. Trabalha nos feriados, se necessário, e faz questão de dar retorno a todas as ligações de empresários e políticos, mesmo as menos urgentes para o banco. “Outro dia, pedi a ele orientação sobre como conseguir financiamento para a compra de equipamentos para um hospital, e ele não só me atendeu prontamente como retornou minha ligação com todas as informações”, diz o senador Delcídio Amaral, do PT de Mato Grosso do Sul. Ou seja, embora prefira ficar longe dos holofotes, nos bastidores Coutinho é um ativo articulador político, o que só faz aumentar seu cartaz — e seu poder de influência.