domingo, 25 de maio de 2008

Banco Central tem motivos para não ser tolerante com a inflação

Não dá para afrouxar

Os novos indicadores sobre preços mostram que o Banco Central tem motivos para não ser tolerante com a inflação

Fernando Donasci/Folha Imagem

Mercado em São Paulo: alimentos mais caros

Por José Roberto Caetano

EXAME

Desde que interrompeu a trajetória de redução da taxa de juro básica da economia, em outubro do ano passado, o Banco Central demonstrou que está preocupado com uma combinação de acontecimentos que pode se tornar perigosa. No mercado doméstico, o consumo aquecido, pelo aumento do emprego e da renda e pela abundância de crédito, vem esbarrando em falta de capacidade de abastecimento em vários setores. Some-se a isso a tradicional gastança do próprio governo, cujas despesas seguem crescendo num ritmo que é o dobro da taxa de expansão do PIB. Do lado externo, as fontes de problema são uma força ainda maior de consumo — a China —, que pressiona os preços de commodities, e a crise financeira causada pelos empréstimos imobiliários podres nos Estados Unidos. A preocupação evoluiu, em abril, para a decisão do Conselho de Política Monetária, ligado ao BC, de elevar em meio ponto percentual a taxa básica de juro, para 11,75%, o dobro do aumento esperado pelo mercado. Foi a primeira alta de juros no país em quase três anos, e é considerada o início de uma série que deve vir nos próximos meses. A medida foi recebida com reclamações dos habituais críticos à atuação de Henrique Meirelles, presidente do BC. Além de esfriar a economia justamente quando o país começava a decolar, a alta também favorece a entrada de mais dólares e joga a favor da valorização do câmbio. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em mais uma de suas manifestações ambíguas, chegou a brincar publicamente ao dizer que não sabia se o motivo das dores de um torcicolo que o atormentava seria uma derrota do Corinthians ou o aumento dos juros. Teria o BC errado a mão?

As recentes divulgações de diversos índices de preços sugerem que não. Os dados deixam claro que nos últimos meses se firmou uma tendência de disseminação de remarcações. No caso dos preços do atacado, negociados entre empresas, o indicador médio já está em 10% anuais, com picos bem mais altos em vários produtos (veja o quadro abaixo). No campo, os agricultores enfrentam aumento de fertilizantes de 65%, o que deve impulsionar os preços de alimentos. A inflação oficial é bem menor: o IPCA ficou pouco acima de 5% nos 12 meses terminados em abril. Mas chama a atenção como ela vem ganhando velocidade — um ano atrás, a inflação anual estava na casa de 3% — e se espraiando pela economia. “A composição da inflação mudou, já não é mais só de alimentos e não vem só de fora”, diz o economista Salomão Quadros, responsável pelos cálculos dos índices de preços da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. “Há vários aumentos de serviços, como os de cuidados pessoais e os de médicos e dentistas, que não têm nada a ver com causas externas.”

Mas como a meta para o índice fixada pelo BC é de 4,5% ao ano, com variação admissível de até 2 pontos para mais ou para menos, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse recentemente, num recado velado a Meirelles, que seria a hora de usar essa folga, tolerando, para não esfriar a economia, um pouco mais de inflação. Outros países com inflação acima da meta “não estão arrancando os cabelos”, afirmou Mantega, citando exemplos como Suíça, União Européia, China, Rússia e Indonésia. A cautela que ao ministro parece dispensável é, na verdade, vista como uma prova de amadurecimento do país. “O BC brasileiro está certo ao tentar permanecer uma curva adiante e não arriscar os ganhos de estabilização conseguidos na última década”, afirma o economista americano Kenneth Rogoff, professor da Universidade Harvard. “A vida está ficando mais difícil no mundo todo. Para manter a inflação baixa, os bancos centrais terão de trabalhar duro e explicar ao público de seus países que estão enfrentando um ambiente externo muito mais desafiador do que antes.”

Um dos desafios desse novo ambiente é o fato de que notícias francamente positivas se transformam em problemas. É o caso do consumo de alimentos no mundo. Obviamente é bom que muito mais pessoas nos países emergentes — incluindo o Brasil — tenham ganhado a possibilidade de comer mais e melhor. Mas é o aumento da demanda justamente o principal impulso das cotações da soja, do trigo e do leite. O mesmo fenômeno ocorre com commodities como o minério de ferro — o maior acesso a carros, eletrodomésticos e outros bens eleva seu consumo e, por extensão, os preços. Os reflexos no Brasil também são ambíguos. Do lado positivo está a grande oportunidade que o país tem de faturar mais com a produção de alimentos e o fornecimento de matérias-primas. Mas o Brasil não escapa de sentir os efeitos da inflação mundial quando compra produtos feitos com base em commodities. “Os picos em alimentos e energia são a vanguarda de uma dinâmica de inflação mais ampla e profunda que os banco centrais terão de enfrentar com políticas monetárias mais restritivas”, diz Rogoff. Por isso, agir rápido é uma boa estratégia. “Uma política monetária mais dura ajuda a controlar a situação e evitar que a pressão se propague além do desejável”, diz o economista Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e sócio da consultoria Tendências.“Mas o BC precisa ser cauteloso na dosagem do remédio.”

A pressão aumenta
Os indicadores da inflação no Brasil atualmente são preocupantes em várias frentes
Para o consumidor
O IPCA, índice de preços que o Banco Central monitora, ainda está dentro da meta prevista, mas a tendência é de alta
2004 7,6%
2005 5,7%
2006 3,1%
2007 4,5%
2008(1) 5%
Para as empresas
O Índice Geral de Preços (IGP-DI), que havia sido controlado em 2005, voltou a crescer desde o ano passado e já acumula alta de mais de 10% em 12 meses
2004 12,1%
2005 1,2%
2006 3,8%
2007 7,9%
2008(1) 10,2%
Matérias-primas em alta
Diversos materiais e insumos acumulam aumento de preço acima da inflação(1)
Barras de aço 15%
Querosene de aviação 28%
Bovinos para abate 35%
Trigo 60%
Fertilizantes 65%
(1) Acumulado em 12 meses até o final de abril Fontes: IBGE e FGV

Nesse debate, é preciso diferenciar aumentos de preços decorrentes de pressões passageiras de mudanças que vieram para ficar. As matérias-primas ampliaram sua participação nos custos substancialmente nos últimos anos, em vários casos desobedecendo aos ciclos de altas e baixas tradicionais. Nas peças para automóveis, que utilizam aço, plástico, cobre, alumínio e outros itens, os materiais passaram a representar 60% do custo médio no ano passado — em 1995, a fatia era de 36%. Não se espera uma reversão nesses preços. “Absorvemos a diferença nos custos com melhoria da produtividade”, afirma Paulo Butori, presidente do Sindipeças, entidade que representa o setor de autopeças.

No longo prazo, espera-se que o aumento da produção possa reequilibrar oferta e demanda, mas isso requer investimento — algo ainda caro de fazer no Brasil — e tempo. Em abril, a indústria automobilística montou 300 000 veículos, volume mensal inédito na história. Os fornecedores das montadoras dão mostra de que o avanço está sendo rápido demais. “Pode haver problemas de abastecimento tanto de autopeças como de matérias-primas, e a pressão de aumento de preços vai continuar”, diz Butori. “Só teremos algum alívio quando for ampliada a capacidade de produção das empresas.” Para dar tempo a essa transição, o BC age no sentido de esfriar um pouco o consumo e diminuir assim o ímpeto dos preços. Economistas e analistas de mercado apostam que a taxa de juro, ao longo do ano, deve ser elevada em até mais 2 pontos percentuais, para 13,75%. “A economia não deve ser brecada, mas esperamos que o crescimento desacelere para perto de 4%, em vez dos mais de 5% que vem apresentando”, diz Loyola. Isso tranqüiliza uma parte dos empresários que já estão lidando com dificuldades para atender aos pedidos dos clientes. “Não gosto de taxas de juro altas, mas prefiro ter um horizonte mais previsível e seguro do que uma situação instável”, diz Butori.

A conta do ajuste poderia sair mais barata se o governo considerasse que outro fator de peso na composição da inflação é o papel que ele próprio exerce como o maior consumidor de bens e serviços na economia — quase tudo para manter a máquina pública. “O BC não precisaria ser tão conservador se a política fiscal do governo Lula não fosse tão frouxa”, diz o economista Rafael Paschoarelli, professor da Fundação Instituto de Administração, de São Paulo. A demanda do governo vem aumentando na faixa de 10% ao ano. “É difícil entender tudo isso”, afirma César Borges de Souza, um dos sócios da Caramuru, processadora de grãos que se viu às voltas com aumento do custo da soja de 39% no ano passado. “O próprio governo joga lenha na fogueira da inflação.”