segunda-feira, 12 de maio de 2008

A luz que vem do campo

Para sustentar o crescimento econômico, o desafio do Brasil é aumentar em pelo menos 5% a oferta de energia a cada ano. A biomassaé parte da solução


Lia Lubambo
Usina Santelisa: bagaço virou fonte de energia elétrica
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Por Angela Pimenta
EXAME

A expansão da economia é um grande feito tanto para as camadas mais pobres da população, que passam a ter acesso a uma série de bens, como eletrodomésticos, quanto para a indústria brasileira, que os produz. Mas esse fenômeno tem um lado preocupante -- o aumento do consumo de energia elétrica, que no ano passado foi de 6,5%. Para atender ao crescimento da demanda, governo e setor produtivo estão numa corrida contra o tempo. As projeções são de que o consumo de energia elétrica deve, num cenário conservador, crescer no mínimo 5% ao ano até 2012. A demanda passaria dos atuais 5 200 megawatts médios para 64 200, segundo a consultoria especializada PSR. Nesse cenário, o país terá de acrescentar 3 000 megawatts a cada ano, apenas para manter o atual quadro de oferta extremamente apertada. Se quiser voltar a ter folga, o ideal seria acrescentar 4 000 megawatts anualmente, montante superior à geração esperada da futura hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, a ser inaugurada em 2012. A questão é: de onde virá a energia adicional que o Brasil vai necessitar nos próximos anos?

De onde virá o que falta
A geração de eletricidade no país deve aumentar em 12 000 megawatts médios até 2012. A participação da biomassa(1) é uma boa-nova no setor
Hidrelétrica 31%
Termelétrica a gás natural 19%
PCH(2) 17%
Termelétrica com biomassa 13%
Termelétrica a carvão 11%
Outros 9%

Uma Itaipu verde
A longo prazo, o potencial de geração de energia elétrica com a biomassa pode ser equivalente à energia gerada hoje pela usina de Itaipu
2009 1400
2011 3300
2016 11500
2021 14400
(1) A cana-de-açúcar é a principal biomassa utilizada (2) Pequenas c entrais hidrelétricas
Fonte: Unica/Cogen-SP

Para remendar o chamado "cobertor curto" do mercado nos próximos anos, a solução será uma combinação de alternativas energéticas. As hidrelétricas, tanto as de grande porte quanto as centrais pequenas, continuarão a ser a principal fonte do país, seguidas das termelétricas movidas a gás, óleo e carvão. Mas há uma novidade que pode ser a chance de o país se livrar da corda bamba: é a energia elétrica gerada pela biomassa, especialmente do bagaço de cana-de-açúcar, considerada pelo governo como o combustível alternativo mais promissor na falta de chuva. A biomassa deve contribuir com 13% do total a ser acrescentado na geração de energia até 2012. Parece pouco, mas é exatamente essa diferença que pode evitar um novo apagão. Atualmente, a maioria das usinas usa a cana apenas para retirar o caldo -- e fazer açúcar ou álcool com ele. Agora, deve aproveitar também o bagaço para queimá-lo, gerando vapor que move turbinas de energia elétrica. "A entrada da biomassa significa uma folga para o mercado num período particularmente crítico", diz o economista José Rosenblatt, da PSR. "Até a virada da década podemos continuar vulneráveis, sujeitos à boa vontade de São Pedro."

Desde setembro do ano passado, o governo estuda um modelo de negócios que viabilize a geração de energia elétrica aproveitando o bagaço da cana. Atualmente, algumas usinas de açúcar e álcool já produzem energia dessa forma para consumo próprio. No próximo dia 30 de abril, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deverá promover o primeiro de uma série de leilões para contratar energia a ser fornecida nas próximas duas décadas. "Além de ser limpa, a eletricidade da biomassa tem a vantagem de poder ser entregue no curto prazo", diz Jerson Kelman, diretor da Aneel. "Outro fator importante é que ela é produzida justamente no período de estiagem, que coincide com a colheita da cana-de-açúcar." Mais de uma centena de usinas sucroalcooleiras se inscreveram para o leilão, que, se bem-sucedido, deverá acrescentar ao sistema elétrico do país 1 400 megawatts em 2009, de acordo com a previsão dos usineiros. No longo prazo, até 2021, o potencial estimado de geração de energia com o bagaço de cana seria equivalente ao da hidrelétrica de Itaipu, que responde por 20% do abastecimento do país. "Estamos empenhados em resolver qualquer tipo de obstáculo, do licenciamento ambiental às questões técnicas, como a licitação e a construção de linhas de transmissão para as usinas de açúcar", diz Maurício Tolmasquim, diretor da Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Ministério das Minas e Energia.

Com o cobertor curto
Acompanhe o comportamento da demanda e da oferta de energia nos próximos cinco anos (em gigawatts)
Demanda Oferta
2008 53,2 51,9 Déficit
1,3
2009 56,2 55,3 Déficit
0,9
2010 59 59,5 Superávit
0,5
2011 61,6 61,2 Déficit
0,4
2012 64,2 63 Déficit
1,2
Conclusão
Com a volta do crescimento, a projeção é de aumento na demanda de energia nos próximos anos. O Brasil terá de gerar pelo menos 3 gigawatts a mais por ano até 2012 — e mesmo assim não estaria descartado o risco de apagão


DE SUA PARTE, OS USINEIROS ENXERGAM no bagaço da cana uma suculenta oportunidade de novos negócios. "A Santa Elisa vai participar do leilão. A perspectiva da biomassa é excelente", diz Luiz Biagi, sócio da usina Santelisa Vale, uma das maiores do setor. No entanto, para entregar a mercadoria no prazo, a partir de maio de 2009 os usineiros terão de cumprir um cronograma apertado. Boa parte das usinas precisa comprar novos equipamentos, como caldeiras de alta pressão para produzir, com o bagaço, o vapor que move as turbinas para gerar a eletricidade. Mas vários grupos já saíram na frente. "Todas as nossas usinas vão gerar energia", afirma Clayton Hygino de Miranda, presidente da ETH Bioenergia, empresa do Grupo Odebrecht criada em 2007 para produzir açúcar, etanol e energia elétrica. "Contamos que até 20% de retorno do investimento virá da venda de energia." A Cosan, maior produtora de açúcar e álcool do Brasil, deve gerar 288 megawatts de energia provenientes de biomassa até 2012.

De acordo com estimativas da Associação Paulista de Cogeração de Energia, as usinas de álcool deverão investir 1,5 bilhão de reais nessa frente. No que diz respeito às linhas de transmissão, serão necessários outros 2 bilhões de reais. A Aneel planeja realizar um segundo leilão, ainda sem data marcada, exclusivamente para as linhas de transmissão que farão a energia gerada pelas usinas chegar à rede existente. Em São Paulo e Minas Gerais, onde está a maioria das usinas, será preciso fazer apenas o reforço e a ampliação das linhas existentes. Mas em Goiás e Mato Grosso do Sul elas serão erguidas quase do zero.

A entrada de uma nova fonte geradora no mercado é uma boa notícia do ponto de vista do combate ao risco de escassez -- embora haja dúvidas quanto ao preço que essa energia será vendida no futuro, provavelmente bem acima dos valores atuais. Mas é certo que o país terá de fazer mais para afastar de vez o risco de apagão. Para os especialistas, o Brasil precisa tirar duas lições dessa crise. A primeira, que está saindo do papel, é a construção de novas hidrelétricas, como as do rio Madeira. Elas devem responder por um terço da energia adicional a ser gerada nos próximos anos. A segunda é a inevitável diversificação da matriz energética. "Além do potencial da biomassa e do gás, temos de investir em fontes como carvão mineral e até energia nuclear", diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. Dado o aperto na oferta, o governo determinou que as termelétricas continuassem operando a gás, óleo diesel e óleo combustível. Hoje, as termelétricas têm capacidade para produzir cerca de 20% do consumo do país. Mas, em razão da falta de combustível, causada pela mudança política na Bolívia, elas só têm produzido 13%. É aí que, de acordo com as piadas do mercado, mais uma divindade entra em ação -- depois de são Pedro e santo Antônio, vem o Espírito Santo. Explica-se: é de terras capixabas que o governo espera despachar, até o final do ano, 5 milhões de metros cúbicos de gás por dia para a geração de eletricidade, o que equivaleria a adicionar 1 000 megawatts à capacidade do país. Mas só haverá gás nacional suficiente para garantir imunidade aos humores do governo boliviano na virada da próxima década, com o funcionamento do campo de Tupi, na bacia de Santos. Ou seja, a sorte do Brasil depende de uma vontade conjunta de todos os santos.