segunda-feira, 16 de junho de 2008

O clube vai aumentar

Problemas com o governo local e a intensa burocracia fizeram com que poucas companhias brasileiras conseguissem se instalar na China. Mas em 2008 um novo grupo de empresas como Gerdau, Sadia e Votorantim vai se aventurar por lá

Kiko Ferrite

André Gerdau: à procura de um sócio chinês que seja,ao mesmo tempo, confiável e eficiente

A China se tornou nos últimos 20 anos um dos principais centros de gravitação da economia mundial. Para grandes empresas que levam a competição a sério, colocar os pés no país se tornou obrigatório. Pode-se não ganhar dinheiro hoje. Ou amanhã. Mas é possível ser grande no futuro sem fazer parte da economia que mais cresce no mundo? Foi essa pergunta que levou o inacreditável número de 600 000 empresas a se instalar na China nas últimas duas décadas. O total investido por elas atingiu 720 bilhões de dólares, valor que supera o tamanho da economia de 162 países. Nessa onda, a participação de empresas brasileiras chama a atenção pela descabida modéstia. Pouco mais de 35 companhias nacionais abriram escritórios na China. A imensa maioria tem um ou dois representantes no país. E apenas quatro abriram fábricas por lá.

Mas, assim como capitalistas do resto do mundo, os brasileiros seguem atraídos pelo fenômeno que a China hoje representa. Neste ano, um novo grupo de empresas nacionais decidiu iniciar sua saga chinesa. Entre elas estão Sadia, Gerdau e Votorantim, gigantes brasileiras que hoje tocam seus projetos com enorme discrição. Há outras. Todas pretendem ter na China uma base de produção.

Nenhum país reúne tantos atrativos para uma multinacional quanto a China. A mão-de-obra é barata, exportar é fácil, o mercado interno cresce de forma avassaladora. Parece, enfim, uma espécie de Shangri-lá para quem quer ganhar dinheiro. Mas a vida real é diferente. Fazer negócios na China é sofrido. Aprende-se rápido que é inútil ter pressa: perde-se um tempo enorme com os obstáculos que a toda hora surgem no caminho. O primeiro deles é o governo, que muda as regras do jogo com uma freqüência desnorteante. A Gerdau enfrenta, agora, esse tipo de problema. As regras de investimento para seu setor mudaram recentemente. A siderurgia passou a fazer parte de uma espécie de lista negra: a China não quer estrangeiros no pedaço. Com isso, as multinacionais que pretendem vir são obrigadas a comprar uma participação minoritária numa empresa local — e aturar um sócio chinês mandando no negócio. A Gerdau sonha há anos com a aquisição de uma fábrica de aços especiais na China. Em outubro, enviou o executivo Wang Yuan, nascido em Xangai e criado no Rio Grande do Sul, de volta à sua cidade natal. Sua missão é achar um parceiro para a Gerdau. Mas, como o setor foi incluído no grupo de não-desejáveis pelo governo, está difícil encontrar o alvo ideal — isto é, uma fábrica que seja ao mesmo tempo eficiente e tocada por um grupo respeitável. “Se não entramos na China, é porque tentamos tudo e nada deu certo”, disse ele.

Associar-se a um parceiro local é a estratégia mais comum de empresas estrangeiras que produzem na China. Primeiro, porque quase sempre é essa a vontade do governo. Em setores considerados estratégicos, não há saída. Quem quer entrar é obrigado a aceitar um sócio chinês. É onde se encaixa a Gerdau. Um estorvo para uns. Um modelo com vantagens para outros. Afinal, um sócio local pode ajudar com suas conexões no governo e em potenciais clientes estatais. A Sadia faz parte desse grupo. A empresa contratou uma consultoria para fazer uma radiografia da estrutura de poder chinesa e, assim, identificar quem pode ajudar em seu futuro negócio. A obsessão da Sadia por influência se explica por sua traumática experiência chinesa. De 1994 a 2006, a empresa teve uma churrascaria em Xangai com um sócio local. A idéia era usar a influência desse sócio para facilitar a exportação de frango brasileiro. Mas logo se viu que o parceiro não era tão influente assim, e nada aconteceu. Por 12 anos, portanto, a Sadia teve em Xangai um elefante branco e inútil. Nessa segunda investida, os cuidados são muito maiores. “Já analisamos mais de 60 fábricas”, diz Wilson Arikita, responsável pela Sadia na Ásia. “Muitas são boas, mas ainda não encontramos aquela que reúna qualidade e influência.” A Sadia cogita até escolher outro país asiático para se instalar caso não encontre um parceiro adequado na China. A dificuldade é tão grande que muitos desistem nessa fase inicial. A Marcopolo abandonou provisoriamente seu velho projeto de produzir ônibus na China. Para isso, teria de ter um sócio local. Como não o achou, decidiu ter uma fábrica de componentes no país, setor no qual o governo permite projetos com capital exclusivamente estrangeiro.

Embora pareçam exagerados, os cuidados que Marcopolo, Gerdau e Sadia tomam na escolha de seus parceiros são plenamente justificados pelas experiências de outros. Erros nessa hora resultam em desastres pouco tempo depois. Há quatro anos, a fabricante de autopeças catarinense ZM abriu uma fábrica na cidade de Shengzhou, a 3 horas de Xangai, com um sócio chinês. A confiança era tanta que os brasileiros deixaram o negócio na mão dos sócios. Pouco tempo depois, perceberam que estavam sendo roubados pelo parceiro. “O rombo era enorme”, diz Luís Carlos Teixeira, diretor da fábrica. Na briga que se seguiu, a ZM conseguiu comprar a participação dos chineses e, em seguida, demitiu toda a administração da fábrica. “Se fosse para começar de novo, nem começaria”, afirma ele. Uma das disputas mais estrondosas da era pós-abertura vem se desenrolando há um ano entre a francesa Danone e seu sócio, o grupo Wahaha, maior fabricante de bebidas da China. Os franceses acusaram o Wahaha de vender os produtos da associação com outras marcas — o dinheiro, assim, ia todo para o bolso dos chineses. A relação deteriorou-se rapidamente e a Danone deve abandonar parte de sua operação na China em breve. Em maio, divulgou-se que a empresa francesa vai vender sua participação na parceria por cerca de 2 bilhões de dólares.

Quem está chegando

As novas empresas brasileiras na China
Gerdau
O que quer lá
Vender aço à indústria automotiva chinesa, a segunda maior do mundo
Em que estágio está
Ainda não definiu seu parceiro na fábrica
Sadia
O que quer lá
Vender carne de frango aos chineses, que consomem cada vez mais proteína animal
Em que estágio está
Já analisaram mais de 60 empresas chinesas, mas não conseguiram encontrar o alvo ideal
Votorantim Cimentos
O que quer lá
Produzir para a indústria de construção civil, um dos maiores motores do crescimento chinês
Em que estágio está
A empresa está procurando alvos de aquisição a partir do Brasil.
Maxion
O que quer lá
Usar a China como base de exportação de rodas
Em que estágio está
A fábrica será inaugurada em junho, com capacidade de produção de 1,8 milhão de rodas por ano
Fras-le
O que quer lá
Produzir autopeças para montadoras instaladas na China
Em que estágio está
Acaba de anunciar o projeto.A fábrica deve começar a produzir em 2009

Uma reclamação comum de multinacionais com parceiros chineses é o roubo de segredos industriais. Estima-se em 60 bilhões de dólares anuais o prejuízo causado pela pirataria no país. A Volkswagen produz carros em associação com a chinesa Saic e descobriu que um de seus modelos tinha sido copiado por outra montadora, a Chery. Havia até partes originais da Volks no carro chinês. As suspeitas do vazamento do projeto recaíram sobre a própria Saic — que, além de parceira da Volks, era sócia da Chery. Multinacionais que aceitam fazer parcerias têm de se habituar com a seguinte idéia: o importante é ganhar mercado hoje, mesmo que o custo disso seja criar o concorrente de amanhã. A brasileira Embraer tem uma fábrica no país desde 2003, em associação com a estatal Avic 2. Pois no ano passado a outra estatal chinesa de aviação, a Avic 1, terminou de produzir seu primeiro jato regional. Embora maior que os ERJ-145 produzidos pela Embraer na Manchúria, o avião chinês ocupará uma fatia de mercado semelhante. Estima-se que 400 000 parcerias tenham sido feitas na China nos últimos 20 anos. Menos de 20% delas deram certo.

Diante desse histórico um tanto assustador, algumas empresas brasileiras decidiram ir à luta sozinhas. Além da Marcopolo, duas fabricantes de autopeças, Maxion e Fras-le, vão abrir fábricas com capital 100% brasileiro na China. Nada indica que, como todos os estrangeiros em busca do mercado prometido, terão vida fácil. A catarinense Weg, uma das maiores fabricantes de motores do mundo, vive há três anos e meio uma dura experiência. No fim de 2004, a empresa comprou uma fábrica estatal na cidade de Nantong, próxima a Xangai. A operação tem custado a engrenar. Só deu prejuízo até hoje. O buraco foi de 10 milhões de reais no ano passado. Andar pela fábrica da Weg em Nantong é como assistir a um filme em câmera lenta: a capacidade ociosa é de 40%, e os operários parecem não ter muito o que fazer. É o contrário do que espera quem ouviu histórias de imbatíveis fábricas chinesas operando a todo o vapor. Todo o desenho da unidade teve de ser revisto, e foram gastos mais de 50 milhões de reais no processo. O objetivo das reformas é levar o faturamento a 100 milhões de dólares em 2010, três vezes maior que o previsto para este ano. Em suas outras aquisições, a Weg levou por volta de três anos para obter o retorno do investimento. Na China, vai levar sete anos. “As coisas começam a melhorar agora”, diz Luis Gustavo Iensen, administrador das operações da Weg na Ásia, enquanto caminha pela linha de produção. “Mas ainda estamos apanhando.”

Nada chama mais A atenção na aventura das empresas brasileiras na China do que a quebra do mito do superoperário. De acordo com esse mito, a mão-de-obra chinesa é obediente, dedicada e fiel. A história das fábricas brasileiras é bastante diferente, o que ajuda a explicar os passos lentos que vêm dando na China. Assim que comprou a estatal chinesa, a Weg expatriou um executivo para comandar os 360 funcionários, habituados ao folgado ritmo estatal de produção. Logo, os chineses se uniram contra o chefe, que teve de ser tirado de lá. Um chinês linha-dura foi colocado em seu lugar. E deu-se a insurreição. Todos os gerentes pediram demissão em seguida, deixando a fábrica à deriva. “Eles estavam acostumados a fazer o que queriam, não o que nós mandávamos”, diz Iensen. “Hoje a situação é totalmente diferente.”

O crescimento está na China
O gráfico mostra a expansão das vendas de cinco multinacionais na China e no mundo inteiro

China Mundo
Siemens 13% 9%
Wal-Mart 53% 6%
Coca-Cola 15% 5,3%
McDonald´s 9% 4,8%
Samsung 14% 9,18%
Fonte: Euromonitor

Embora casos como esse sejam mais raros, as dificuldades cotidianas podem ser enervantes. Para executivos estrangeiros, os problemas de comunicação não se resumem à língua. Com o tempo, os brasileiros da fábrica de compressores da Embraco em Pequim perceberam um curioso hábito de seus funcionários. Quando eles concordavam prontamente com uma ordem recebida, era sinal de que não a executariam. Para facilitar a comunicação com os funcionários, a Embraco contratou o ex-diplomata chinês Ge Xujin, dono de um fluente português. Sua função é traduzir o comportamento dos operários para os executivos brasileiros. “Ele fica nas reuniões e avisa se os chineses estão concordando ou não com as ordens. Porque, se eles não concordam, não fazem”, diz Edemilson Barbosa, um dos executivos da Embraco. E podem não fazer — simplesmente porque os empregos são abundantes e estimulam uma espécie de infidelidade crônica. O superaquecimento da economia nos centros industriais gera uma enorme concorrência por mão-de-obra. Na ZM, mais de 70% dos operários deixam o emprego a cada ano. “Assim, é impossível investir em treinamento”, diz Teixeira, o diretor da empresa. E investir em treinamento é justamente o que as companhias estrangeiras precisam para transferir seu modelo de gestão para a China.

A miríade de desafios enfrentados pelas empresas brasileiras não muda o fato de que a China representa uma oportunidade irresistível de crescimento. A Gerdau quer ter uma fábrica para produzir exclusivamente para a indústria automotiva chinesa — que logo se tornará a maior do mundo. A Sadia quer participar do fenômeno que está transformando o planeta, a elevação do padrão de vida de 1,3 bilhão de chineses. “A China vai precisar de proteína, e nós precisamos estar aqui”, diz o diretor Arikita. Segundo algumas projeções, o país vai comprar 1 400 aviões de porte médio até 2025, e a Embraer só tem a ganhar com isso. As maiores multinacionais fizeram do mercado doméstico chinês seu motor de crescimento (veja quadro), e para as brasileiras a chance é a mesma. Mas leva tempo. Após 13 anos na China, a Embraco vive um momento único. Sua fábrica de Pequim funciona 24 horas por dia, e a capacidade aumentará 50% nos próximos meses. O número de funcionários passará de 1 200 para 1 600. Somente no ano passado os brasileiros conseguiram se sentir donos do negócio, ao derrubar o último feudo de seu sócio comunista, o departamento de recursos humanos. “Levou esse tempo todo até que nosso sócio confiasse na gente a ponto de nos entregar a gestão das pessoas”, diz João Lemos, diretor da fábrica. Com mais de uma década de experiência na China, Lemos é uma espécie de patriarca da comunidade de negócios brasileira no país. Apesar do momento eufórico, ele sabe que a fábrica ainda está a cerca de cinco anos de atingir a produtividade considerada ideal. “Na China é assim mesmo”, diz ele. “Ou você tem paciência ou é melhor ficar em casa.” Palavra de quem já viu de tudo.